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12 de junho de 2016

Histórias de amor. Ridículas




"O amor prefere a luz das velas. Talvez porque seja isto tudo o que desejamos de uma pessoa amada: que ela seja luz suave que nos ajude a suportar o terror da noite. Sob a luz do amor que ilumina modesta e pacientemente, o escuro já não assusta tanto.
-"As Velas", de Rubem Alves


- Eu não sou deste mundo. – revelou, já no primeiro encontro.

O outro sorriu. Um sorriso bonito, uma covinha que embelezava ainda mais seu rosto. Talvez ele concordasse, já naquele momento, mas nada disse. Fez: pegou a mão do outro e aninhou dentro de suas mãos. Olhou dentro dos seus olhos. O amor é tão clichê... Mas não era amor naquele momento. Aquele friozinho na barriga. Beija, não beija. Onde coloco as mãos? Ansiedade, talvez.

Começaram a ler as estrelas. O astro de um era guerreiro, Marte, Ares; o outro tinha como sina a doçura da beleza e da calma de Vênus, Afrodite, talvez. O segundo duvidou, acostumado a interpretar o céu. “Está errado, só pode”. O outro sorria. “Talvez eu seja um guerreiro desarmado”. Não deu outra. Ascendente Câncer. O outro jurava que isso explicava. O filho de Ares só concordava. Tudo que ouvia dizia muito de si.

Os encontros tomaram os dias da semana. Antes, só se viam aos sábados e domingos. Talvez na sexta. Essas coisas a gente não controla. Definitivamente não. Um deles soube. O filho de Ares. Não queria cair. <em>Fall in love</em>. Mas o outro tinha um perfume de tons amadeirados que impregnava a sua roupa e o deixava com um sorriso idiota de canto de rosto quando levava a trouxa para lavar. Tinha uma mania esquisita de dormir com o dedo na boca e esquecer de colocar o cobertor e era tão lindo, tão lindo, tão lindo dormindo e ele sempre olhava e o abraçava e o beijava e o outro nunca acordou. O outro tinha uma cara fechada de raiva que era tão bonita e ele sempre o irritava só para rir. E ria, ria, ria. Caiu de quatro. Cair de quatro não era para ele. Ele não entendia, mas a queda era deliciosamente reconfortante. A gente se acostuma com esse tipo de coisa.

O “outro” nem ligava. Filho de Afrodite, a deusa do amor. Para ele era natural. E por que o amor deveria ser uma luta, afinal? Se era um enroscar suave de corpos, um café quente em uma manhã chuvosa de um domingo friento, um abraço apertado na despedida e uma mensagem de “eu te amo” no meio da aula na metade da semana que não tinha fim.
Mas sempre há a guerra. A trava. "Eu não queria assim". "Você não deveria ter feito isso". Se pudesse os dois apagavam esses incêndios. Aboliam. O passar dos anos gera um passo cadenciado de saber onde não pisar. O meu espaço e o seu. Basta permitir. O amor é isso, né? Permitir. Deixar o outro entrar e não ter medo. Eu não sei você, mas eu sinto falta disso. Um cafuné. Um abraço apertado que sufoca e não solta, por favor, não solta, quero morar dentro desse abraço e você se agarra naquele abraço e o outro se afoga no seu calor. Já deram um abraço apertado, assim, verdadeiro?

O sexo muda, todo mundo dizia. Quem dera soubesse. Com o amor, eu digo. E mudou. Eles aprenderam, afinal. Quais os botões certos. E que a orelha é o ponto fraco de um e que apertar a bunda é quase matar o outro. Dormir de conchinha (antes era tão desconfortável) era a forma sexual mais pura e recompensadora. “Você dorme hoje na minha casa” era um convite ao delírio. Às vezes nem se convidavam. Com o passar do tempo nem precisava mais. Era uma certeza. PRECISAVAM dormir juntos. Depois daquela festa, a noite toda, os corpos cansados. Chegavam em casa e dormiam um em cima do outro. Às vezes os corpos ainda aguentavam mais algum tempo de uma dança maluca de beijos, braços e amassos, mas sempre, sempre, um estava abraçado ao outro, no final. Denominaram “a arte de dormir em conchinha”. Os dois brincavam que um dia colocariam como habilidade no Linkedin.


O senso comum já aceitou que sexo vicia. Depois que começa é difícil parar. Mas são poucos os que assumem que amor é uma droga. Aquele amor de verdade. Aquele que te deixa de quatro, metafórica ou literalmente, e dá aquela saudade. Depois que você experimenta, você nunca mais é o mesmo. E você quer mais. Algumas pessoas se negam, porque está todo mundo assustado, com medo dessa droga. A política anti-amor já fez adeptos demais. Cair de quatro é sinônimo de humilhação. “Eu não sou desse mundo”, já dizia, no primeiro encontro, um dos personagens deste conto. Diz isso sempre quem sente e não tem medo. Que sabe que todas as cartas de amor são ridículas e que só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas, como bem dizia Fernando Pessoa.