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20 de julho de 2019

Catarse de Natal



"Ao contrário dos outros Natais, eu resolvi fumar um baseado antes da ceia. Talvez mais de um. Ou três. As coisas ficaram um pouco embaçadas. Por isso, eu não sei dizer muito bem quando as coisas começaram a esquentar: talvez tudo tenha começado quando a Nat soltou que a Ana era gata demais e o Rô fez uma cara maliciosa que não agradou nem um pouco a minha amiga; ou talvez quando a Fernanda lançou que a solução para o Brasil seria a intervenção militar, logo depois de falar que o funcionalismo público no país era uma “máquina de sustentar vagabundos”; pode ser que tenha sido quando a minha mãe “acidentalmente” derrubou vinho no vestido branco da Fernanda. Mas de uma coisa eu tenho certeza: o negócio pegou fogo mesmo quando o Juninho perguntou onde é que eu tinha “pegado AIDS”. Nessa hora todo mundo ficou calado. E eu achando que tinha me livrado da tradicional guerra de Natal...

Eu senti uma coisa estranha na hora. Não sei bem o porquê. Talvez por causa do baseado, pela presença da Ana, pela raiva que eu ainda tinha guardada pelas coisas que o Juninho tinha me falado ou talvez por tudo isso junto. Naquele momento me veio um déja vu que não era bem um déja vu porque eu nunca tinha sentido isso antes. Eu entendi que nada ia ser do mesmo jeito, mas que de certa maneira tudo ia continuar igual. É estranho, eu sei. O Juninho continuaria implicando comigo em todo Natal, porque eu sou aquilo que ele quer desesperadamente extirpar de dentro de si. A minha vó vai continuar trazendo salpicão. O Rô vai trazer as suas namoradas e a gente vai se envergonhar por elas presenciarem essas brigas de família. Mas as coisas não seriam as mesmas. A Ana estava ali, cara. Cara... Isso me lembra o Saulo. Outros Saulos vão aparecer. Pessoas que querem conversar comigo porque estão no mesmo barco que eu. E eu vou beber os meus remédios, todos os dias. Vou ter que me preocupar com a minha saúde de um jeito que eu nunca tinha me preocupado antes. Eu vou ter que sair do armário e declarar a minha sorologia para todo e qualquer cara com quem eu queira me relacionar. Uns vão quebrar a minha cara. Outros vão me surpreender. Outros vão simplesmente sumir. E tudo bem. Eu senti uma paz tão grande naquele momento, me deu uma vontade enorme de abraçar o Juninho e foi o que eu fiz. Comecei a dar uma gargalhada muito gostosa porque ele fez uma cara tão assustada e isso foi muito engraçado. A Ana disse que todo mundo ficou me olhando, mas na minha cabeça estava todo mundo rindo comigo. Eu acho que eu vou chamar isso de catarse do Natal. Uma coisa bem Clarice Lispector.

Depois do abraço, o Juninho ficou muito, muito estranho. Acho que ele precisava que eu gritasse com ele. Ele precisava que eu me sentisse pra baixo. A vitória dele era a minha tristeza. Mas dessa vez eu não fiquei triste. Eu não vou mais ficar triste por causa do Juninho. Eu não vou mais ficar triste por causa do que as outras pessoas vão pensar.

Vou pensar positivo. É isso. Positivo.