"The Boy Next Door", 2006
36" X 48", acrylic on canvas
36" X 48", acrylic on canvas
Amor.
Prefiro acreditar que foi isso que eu sempre busquei.
Porém, nestes becos destas ruas solitárias o que mais me negaram foi isso: amor...
Fui um marginal solitário. Percorria as ruas desta cidade
nas noites solitárias. Sou também um pecador. Nasci assim. Sou fraco talvez,
mas não sei fugir da minha sina. Percorria as ruas desta cidade em busca de
pecadores como eu, que pagassem para pecar.
- Pecado! - todos os dias eu me lembrava. - Pecado, meu
filho! Pecado mortal!
- Mas existe pecado inato, minha mãe?
- Nascemos pecadores, meu filho... – era minha agonia
diária a lembrança dessa sentença.
Havia dias em que eu pensava que tudo poderia mudar. Um
sorriso, um abraço aconchegante, uma palavra carinhosa. Para um mendigo essas pequenas
coisas tornam-se esperanças de dias melhores. Sonhos, apenas. Aos poucos fui
percebendo que não é preciso ser um mendigo pra se sentir solidão. E os
solitários eram os mais carinhosos, mas eles nunca achavam que eu poderia curar
a sua solidão. Bem, não lhes culpo. Quem pensaria que um marginal pecador tem
coração?
Sem casa, sem família, sem amigos eu vivia era de
compaixão. E as pessoas caridosas a gente nunca se esquece.
Dona Maria, a dona do restaurante do centro da cidade.
Acolhia os pecadores, nos abraçava. “Terça e quinta comida pra vocês todos. Por
conta da casa!”. E, nesses dias, ela ficava me procurando. Quando eu não
aparecia, ficava preocupada, é o que diziam. Quando me achava, eu recebia
aquele abraço quente, forte e aconchegante. Era uma segunda mãe.
- Tão bonito, tão jovem... Você tem que sair dessa vida,
meu filho! Não quer trabalhar aqui no restaurante? Você daria um excelente
garçom!
“Pecado, meu filho! Pecado mortal!”
- Quem é que vai querer um pecador neste restaurante tão
lindo, tão limpo, tão quente, dona Maria? Sou um marginal, essa é a vida que
mereço...
Nestas horas não conseguia encarar os seus olhos cheios
de lágrimas. Com a cabeça baixa, pegava um prato de comida e comia calado e
quieto.
- O que te faz pensar assim, meu filho? Você é um rapaz
tão bom...
“Nascemos pecadores, meu filho...”.
Também o seu José, dono do carrinho de pipoca. Pra gente
era grátis.
“Na minha época essas coisas não existiam. Onde o mundo
vai parar, meu Deus? Onde foi que eu errei? É culpa dessa televisão, dessas
revistas. Ficam propagandeando esse estilo de vida de imundície!”
- Sabe, meu filho, eu não rejeito vocês não! – era o que
dizia o seu José. – Tive um grande amigo. Ele era como vocês. Ele era amigo do
peito mesmo. Éramos amigos de infância. Mas os pais brigaram quando souberam,
foi uma coisa feia. A cidade toda ficou sabendo. Na minha época a coisa era
feia...
- O senhor se afastou dele, seu José?
- Claro que não! Eu o acolhi em minha casa mas o coitado
era muito orgulhoso. Não aceitou ficar lá por muito tempo. Saiu por aí, disse
que ia tentar a vida em algum lugar que acolhesse pessoas como ele. Nunca mais
tive notícias dele.
E os olhos quase em lágrimas.
- Faz muito tempo, seu José?
- Sim, bastante tempo...
“Na minha época essas coisas não existiam. Onde o mundo
vai parar, meu Deus?”
Mas quem me tirava os melhores sorrisos era o seu
Palhaço, como a gente gostava de chamá-lo. Sempre rodeado de crianças, ele
contava as melhores piadas, fazia as caretas mais engraçadas e dava os melhores
abraços. As crianças também nos abraçavam até serem tiradas dos nossos braços
por seus pais.
- Criança não julga. É pura. O tempo que vai tirando
nossa pureza. – dizia o seu Palhaço.
“Nascemos pecadores, meu filho...”.
Mesmo sem maquiagem e fantasia o seu Palhaço era
extremamente cômico. Não consigo imaginar o seu Palhaço em outra profissão sem
ser a de palhaço.
- Sabe que nem eu?
Tenho certeza que é o que ele diria.
Seu Palhaço era engraçado, contador de história, agradava
crianças e adultos. Isso todos nós sabíamos. O que não sabíamos era que o seu
Palhaço tinha uma família. Foi num domingo, se não me engano. Nós todos
reunidos na praça. Todos dormindo nos bancos, exceto eu. Estava deitado, mas eu
estava bem desperto, preso em lembranças e pensamentos.
Uma mulher veio me acordar. Ela sorria. Perguntou se eu
era o “preferido do seu Palhaço”. Sorri também.
- Sim, sou eu dona moça!
- Deixa eu me apresentar. – disse ela. – Sou a mulher do
seu Palhaço. Vim aqui pra conhecer os protegidos dele.
Levantei em um pulo. Abracei a dona moça e fiz questão de
arrumar a minha roupa amassada. Apresentei-lhe o meu melhor sorriso e falei
muito bem do seu Palhaço. Ela sorria, fazia piada. Dona moça passava roupas
pras senhoras ricas. Era humilde, simples e amorosa como o seu marido. “Boa
escolha fez ele”, foi o que eu pensei.
- Há alguém por aqui que deseja lhe conhecer. O seu
Palhaço fala tão bem de você que ele veio até aqui pra ver se o meu marido não
estava exagerando. Nós dois sabemos que às vezes ele gosta de acrescentar
coisas...
Junto ao seu Palhaço estava um rapaz. Parecia ter a minha
idade, mas com certeza não éramos nem um pouco parecidos. Ele usava roupas
limpas, tinha o cabelo penteado e bem cuidado, a barba feita. Ah, não posso me
esquecer. O sorriso perfeito. Ele sorriu quando me viu e veio até mim. Seu
jeito de andar era de gente decidida e dona de si. Resoluto, olhando para onde
se dirigia, sem esconder os olhos, sem cabeça baixa e rosto vermelho de
vergonha.
“Pessoas como você estão fadadas a nunca encontrar amor!”
- Ouvi falar muito de você! – disse sorrindo.
Não havia outra opção a não ser sorrir também. E, com
roupa, foi a primeira vez que fiquei inteiramente nu. “Eu tão sujo perto desse
moço tão limpo e brilhante...”.
- Você não é sujo.
Olhei pra ele, assustado.
- Meu pai disse que você é muito cruel consigo mesmo. Eu
o achei muito atraente.
Ele estendeu a sua mão. Eu lhe dei a minha. Juntos
caminhamos e até hoje seguimos a estrada juntos.
Minha mãe estava enganada. Carlos, o filho do seu Palhaço,
foi o cara que me deu amor e que me livrou dos meus pecados. Ou pelo menos,
daquilo que eu achava que era pecado. Amor. E amor nunca pode ser pecado.
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