Mas tudo tem um limite e eu havia chegado ao meu. Eu me
rebelei em uma noite. Foi noite de Lua Cheia. Claro que não era coincidência.
Noites de Lua Cheia são as noites em que fico mais carente por amor, as noites
em que tenho mais sede de amar e ser amado. E ser um pedaço de carne que é
usada por todos não é amor. Nunca vai ser. Foi numa noite de Lua Cheia que eu
me revoltei e gritei para todos da matilha ouvir.
- Eu
não aguento mais. Escutem quem quiserem ouvir. EU NÃO AGUENTO MAIS! Sim, estou
gritando. Para que todos ouçam, para que todos me apedrejem depois, se
quiserem. Que me batam, que falem mal, que me zombem, que me humilhem. QUE ME
MATEM. Mas vocês vão me ouvir!
Todos
se calaram e me olharam, atentos. Ainda eram olhos de lobos. Mas eram lobos
assustados. Estavam atentos. Continuei.
- Vocês
são um bando de lobos. Mas, ao mesmo tempo, vocês não passam de pedaços de
carne. São lobos, pois ficam disputando pedaços de carne uns com os outros. Mas
são pedaços de carne para lobos. Não passam disso. Vocês apedrejam todos
aqueles que se amam porque são covardes. Têm medo de não serem amados. Têm medo
de ficar à mercê de alguém. Têm medo de se entregar. Ser um lobo que come todo
e qualquer pedaço de carne é fácil. Ser um pedaço de carne para todo e qualquer
lobo é fácil. Quero ver se envolver com alguém, admirar as suas qualidades,
aturar e tentar ajudar a diminuir seus defeitos e manias. Quero ver se encantar
e se perder por alguém. Lutar contra o tempo, para que a relação não caia na
rotina. Lutar contra si mesmo, para que você seja sempre o melhor para essa
pessoa. Não, vocês são covardes!
Eu
esperei vaias, gritos. Esperei tapas, socos e murros. Mas tudo que recebi foi
olhares atentos. E não eram mais olhares de lobos. Eram apenas olhares de
garotos. Garotos que percebiam o quão idiotas haviam sido. Garotos carentes e
cansados de serem apenas pedaços de carne e lobos. Garotos arrependidos. E,
dentre esses olhares, havia apenas um que me deixava sem jeito. O olhar de
admiração de Gabriel. E o seu sorriso, tão perfeito.
- Ele
tem razão!
- Já
estou cansado de ser um pedaço de carne!
- Eu
também!
- Eu
também!
- E eu
também! Eu quero alguém que goste de mim, realmente. Mas eu sempre tive medo de
ser condenado por isso!
- Eu
também!
Os
gritos iam se multiplicando. Mas uma pessoa continuava com olhos de lobo. Olhos
de lobo traído. Olhos de lobo furioso. Olhos de lobo líder, que tem a obrigação
de voltar a demarcar território.
- São
mesmo um bando de covardes! Quem se importa com esse papo idiota sobre amor?
Quem se importa com amor? Aliás, quem de vocês realmente sabe o que é amor?
Amor machuca. Amor fere. Amor deixa feridas. Ninguém precisa de mais feridas.
Ninguém precisa ficar se humilhando por outra pessoa, para ser deixado de lado.
Ninguém precisa se dedicar à outra pessoa e depois não ser valorizado. Amor é
isso... Apenas isso! Sexo não. No sexo os dois sempre dividem. No sexo os dois
se unem. Os dois se tornam um só. No amor você nunca será totalmente
correspondido.
Nesse
instante os olhos de lobo sumiram. Estava tudo explicado, finalmente. João era
apenas um garoto ferido pelo amor e, por isso, havia se tornado um lobo. Ele
apenas precisava curar as suas feridas. E, se tornando um lobo caçador de
carne, ele não iria conseguir isso. Mas o importante era que todos entenderam.
Foram todos saindo da sala até restar eu, Gabriel e o João.
-
Vamos, Artur! – me chamou Gabriel, sorrindo.
- Pode
ir. Eu preciso conversar uma coisa com o nosso amigo João.
Ele
balançou a cabeça, em sinal de afirmação, e saiu.
- João,
não fique assim. Só porque uma vez não deu certo não quer dizer que não irá dar
certo novamente.
Ele
olhou pra mim e abaixou a cabeça. Estava chorando.
- Eu o
amava tanto, Artur. Assim como você ama Gabriel. Mas eu não era amado. Fazia
tudo por ele. Tudo mesmo. Mas eu era invisível pra ele. Mas os outros gostavam
de mim. Do meu corpo. De usar o meu corpo. E então, um dia eu desisti. Desisti
dele. Desisti de mim mesmo e me entreguei aos outros. Fui fundando o nosso
grupo. Fui me tornando um lobo, como você disse. Mas eu nunca o esqueci. Nunca
vou esquecer...
- Quem
é, João?
Ele
apertou as mãos, levantou a cabeça e me olhou nos olhos.
- Você!
* * *
Depois
de algum tempo as coisas voltaram ao normal. Os grupos pararam de se reunir. Os
garotos começaram a se amar. Eu consegui me perdoar por ter sido o estopim de
tantas crueldades. Com o tempo parei de me perguntar como seria se eu tivesse
sido mais atencioso com João, se tivesse desconfiado que ele me amava. Quanto ao Gabriel... Bem, eu ainda enfrento o
tempo para que a nossa relação não caia na rotina. E, depois de viver entre
lobos, a relação sempre se fortalece. E a gente aprende que nunca devemos nos
tratar como pedaços de carne e muito menos sermos lobos devoradores.