Sim, ele nos tinha em suas mãos. Foi o que eu pensei na
hora. Eu estava apreensivo. Como o Gabriel podia ter sido tão imprudente? A
biblioteca só abre durante o dia. A biblioteca muitas vezes foi o nosso
refúgio. Foi na biblioteca onde tudo começou. Foi nos primeiros dias, naqueles
terríveis dias de novato. Eu estava nervoso. Eu andava tropeçando nos meus
próprios pés. A biblioteca era o meu refúgio, por ser o único lugar do colégio
onde os funcionários fazem vista grossa diante de badernas.
Não sei
se vocês sabem, mas Gabriel é um nome de anjo. E Gabriel parecia mesmo um anjo.
Ele tinha os cabelos loiros e os olhos azuis, maravilhosamente azuis. Tão
maravilhosamente perfeito. E eu ficava o observando, só para achar algum
defeito. Ele ia à biblioteca. Tinha preferência pelos livros policiais. “Gosta
de mistérios”, era o que eu pensava. E então eu fui me tornando um mistério, só
para que ele gostasse mais de mim. Mas eu não precisava fazer muita força para
ser misterioso. Ninguém me notava, aliás. Eu era o menino novato tímido que se
escondia atrás dos livros. E o Gabriel era o menino perfeito, com aparência de
anjo, que todos os lobos desse colégio desejavam. Mas ele não se entregava para
ninguém. “É mesmo um anjo!”.
Bem,
talvez eu tenha sido um pouco exagerado ao dizer que ninguém me notava. Havia o
João. No começo ele era diferente. Ele era um cara legal. Foi meu amigo durante
muito tempo. Ele fazia tudo por mim, tudo mesmo. Era um grande amigo. Então eu
resolvi contar sobre o Gabriel, sobre os meus sentimentos por ele. Ele ficou
estranho. “O amor é uma coisa traiçoeira. Não se apaixone por esse menino!”,
disse ele, com um olhar esquisito. Parecia irado. Eu fiquei me perguntando
porque tinha tanto ódio do amor. Com o tempo ele foi se afastando de mim. Antes
os grupos eram desorganizados, mas ele acabou se tornando um líder. Todos do
grupo olhavam uns aos outros fixamente, com olhares de lobo. Pareciam que
queriam devorar todos. E eles queriam devorar, literalmente. Começaram a criar
as suas próprias regras. Foi mais ou menos nessa época que o Rodrigo e o
Marcelo foram punidos por se amarem. João foi quem os denunciou. Ele não era o
garoto que eu havia conhecido. Talvez nunca tivesse sido.
Um dia o
Gabriel me notou. Olhou para mim enquanto eu estava lendo um livro. E sorriu.
Um sorriso perfeito. Todos os dentes perfeitamente alinhados, maravilhosamente
brancos. Eu comecei a amá-lo nesse momento. E achei que ele também havia
começado a me amar. E eu estava certo, como vim a saber depois. Eu sorri
também.
Depois
disso começamos a nos encontrar bastante na biblioteca. Na estante de livros
policiais foi o nosso primeiro beijo. Era o nosso crime. O nosso crime
perfeito. E também era o nosso segredo.
-
Ninguém pode saber que a gente se ama, Artur. Esse é o nosso segredo.
Eu, por
nada nesse mundo iria revelá-lo. Foi o que eu prometi pra mim mesmo.
A gente
se encontrava sempre no meu quarto. Éramos extremamente cautelosos e só nos
encontrávamos nas noites em que a matilha se reunia. A matilha foi o apelido
que eu dei para aquele grupo de lobos. Eles continuavam a me olhar com olhos de
lobos quando eu resolvi deixar de ser o garoto que se escondia na biblioteca. A
diferença é que agora eu era mais desejado. Eu andava com tanta segurança e
havia adquirido tanta firmeza que eles estranharam. Tenho certeza que eles
pensavam que eu escondia algo. E eles não estavam errados. “Ninguém pode saber
que a gente se ama, Artur. Esse é o nosso segredo”.
Mas, em
uma noite de Lua Cheia, Gabriel foi imprudente e nos entregou. Ficamos nas mãos
do João. E, desde esse dia, nossa vida no colégio se tornou um inferno.
A
primeira coisa que João exigiu foi que Gabriel se entregasse pra ele. Além
disso, eu teria que observar a cena. Achei que era a pior noite da minha vida.
Ter de assistir o meu amante sendo possuído por outro. E João não era nem um
pouco sutil e carinhoso. Ele não passava de um brutamonte. Eu tive de me
controlar para não avançar pra cima dele e enchê-lo de socos. Porém, tudo que
eu fiz foi assistir a cena, em lágrimas. Eu pensei que essa tinha sido a pior
noite da minha vida. Eu mal sabia como seriam as outras...
Depois
João exigiu que nós dois fizéssemos sexo em sua frente. Eu quase o soquei ao
ouvir essa proposta. Isso era demais. “Mas nós temos de fazer, Artur. Não temos
outra opção”. Estávamos sendo covardes. Não estávamos lutando por nosso amor,
pelo nosso direito de amarmos quem quisermos. Só porque uma matilha não sabia o
que era amar e ser amado, nós devíamos ser privados do amor? Não, isso não era
certo. Mas eu me lembrava do Rodrigo e do Marcelo. Todas as noites eu me
lembrava dos olhos roxos, os hematomas, o braço quebrado. Todos zombando de
algum dos dois quando passavam. E o silêncio dos professores e demais
funcionários. Isso era o que mais me matava. Eles poderiam pedir aos pais para
sair do colégio, mas o que iriam dizer? Qual seria a desculpa para saírem? A
verdade não poderia ser dita. Eu pensava em tudo isso. “É, realmente não temos
opção”, eu concordava.
E nós
nos entregamos diante do João. E ele nos olhava. Aqueles olhos de lobo,
insaciáveis. Aquele olhar sádico, depravado. Gabriel não aguentou. Ele me
abraçava, chorando. Mas éramos obrigados a continuar, João o exigia.
E as
exigências continuavam. Tivemos de entrar para a matilha, participar de suas
orgias, beijarmos aquelas bocas sedentas por luxúria, nos entregarmos àqueles
garotos sedentos por um pedaço de carne. E era isso que eu me sentia. Um pedaço
de carne. Sem coração, sem sentimento, sem emoção. Será que eles não sentiam
isso? Que não passavam de um pedaço de carne sendo usada? Era o que eu me
perguntava quando estava lá. E eu me surpreendia por conseguir pensar, por
ainda conseguir pensar. Sem dúvidas, essas foram as piores noites da minha
vida.
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